segunda-feira, 26 de março de 2018

Políticos e banqueiros forjam "experimento social" com estudantes da rede pública de São Paulo

Por: Salomão Ximenes, Fernando Cássio, Silvio Carneiro e Theresa Adrião

Para especialistas, projeto de Alckmin estabelece relação perde-perde: perdem estudantes, perde o Estado imobilizado por quatro anos. Só não perdem banqueiros e suas assessorias educacionais.


Foto: EBC 
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) abriu consulta pública sobre uma proposta de privatização parcial da gestão de 61 escolas em áreas de vulnerabilidade na região metropolitana da cidade de São Paulo, o chamado Contrato de Impacto Social (CIS). Anunciada com pompa e circunstância, a proposta de Parceria Público-Privada do governo paulista traz a pérfida novidade de transformar os estudantes da rede estadual em cobaias de experimentos empresariais.
O CIS foi pensado por uma coalizão formada por BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Banco Mundial, a ONG britânica Social Finance e o Insper, este com o braço de consultorias Insper Metricis, além da própria SEE-SP. A ideia é contratar, via licitação, pessoa jurídica – com ou sem fins lucrativos – que, ao final dos quatro anos de implementação da política, reduza em 7% as taxas de reprovação nas 61 escolas estaduais contempladas, sem redução da nota no Saresp (o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), em comparação com outras 61 escolas de perfil semelhante que comporão o “grupo de controle”.
O agente privado será pago por resultados intermediários (25% em cada avaliação de progresso) e final (50% do valor), podendo receber até R$ 17,7 milhões pelo serviço. Na equipe de trabalho sugerida na minuta de Edital, consta, além da estrutura privada de administração e coordenação do projeto, a contratação terceirizada de coordenadores pedagógicos e educadores para as 61 escolas contempladas, que serão os responsáveis pela implementação do programa. Às 61 escolas do “grupo de controle” nenhum centavo de novos recursos é destinado. Para participar da concorrência é preciso comprovar o “bom desempenho anterior na gestão de serviços educacionais na educação básica que tenham envolvido 5.400 (cinco mil e quatrocentos) alunos” e um capital mínimo de R$ 1,7 milhão. Além disso, ao ganhador é permitido subcontratar boa parte dos serviços a serem ofertados.
Embora o documento mencione as altas taxas de evasão e reprovação escolar e os baixos índices de proficiência no Ensino Médio, supostos alvos da nova política, a série histórica de programas de educação “inovadores” implantados pelos governos do PSDB desde os anos 1990 em São Paulo se apoia em orientações de braços sociais de corporações privadas desde há muito. Tais programas, longe de enfrentarem o problema da qualidade da escola pública, têm aumentado o fosso das desigualdades educacionais no estado. A leitura da proposta de Edital nos leva a questionar em que medida reduzir a evasão escolar e melhorar o desempenho no Ensino Médio são de fato as preocupações da nova política. Pois, por “impacto social”, compreende-se a realização de investimentos que criem “estímulos econômicos para que o mercado invista em atividades com potencial de gerar ganhos sociais relevantes e que, ao mesmo tempo, sejam capazes de gerar retorno financeiro para os investidores”. Em outras palavras, trata-se de alienar os direitos sociais e as responsabilidades do Estado com a educação em um generoso balcão de negócios, formalizando a sujeição da educação pública à lógica da venture philantropy (filantropia de risco).
Cobaias escolares
O CIS se baseia no que, no campo de políticas públicas, denomina-se “avaliação de impacto social”. No caso em questão, estamos tratando de políticas educacionais e, portanto, de escolas públicas, de profissionais da educação e de estudantes.
A SEE-SP elegerá 122 unidades escolares com alto grau de evasão e baixo rendimento escolar entre alunas e alunos. Elas serão divididas em dois grupos de 61 escolas: as “escolas de tratamento” – gerenciadas pelo agente privado selecionado – e as “escolas de controle” – aquelas que não receberão as intervenções, mantendo-se no conjunto de políticas oferecidas pelo Estado -. Assim, para cada escola de tratamento haverá uma escola de controle. O objetivo é demonstrar, pelo contraste entre as escolas “pareadas”, o diferencial do desempenho das novas políticas de gestão escolar.
Dessa forma, o Estado de São Paulo contratualiza melhorias para 61 escolas em situação de vulnerabilidade e exclui, de forma deliberada, outras 61 unidades na mesma condição. E se o Estado decidisse assegurar às escolas do grupo de controle iguais condições na “disputa”? E se investisse em seus projetos político-pedagógicos, nas melhorias das condições de gestão, igualmente com a contratação de supervisores e educadores adicionais que trabalhariam para reduzir as taxas de reprovação e evasão? Estaria violando o contrato ao interferir no “grupo de controle”?
Amplamente utilizadas em estudos de estatística causal com dados públicos – muitos deles problemáticos, por sinal -, as técnicas de “pareamento” (matching) servem para mimetizar uma situação experimental que seria impossível de realizar na prática, por razões de ética científica. Pois a SEE-SP manda a ética às favas, e propõe realizar o irrealizável: um experimento social usando como cobaias os estudantes de sua própria rede de ensino. É inconstitucional e ilegal porque deliberadamente aspira produzir desigualdades, em sentido literalmente contrário aos objetivos do Estado e do ensino (Constituição, Art. 3º e Art. 206, I).
Só uma mentalidade tecnocrática obtusa pode desconsiderar a gravidade que é leiloar as vidas de milhares de estudantes, tornados cobaias da “engenharia social” de bancos, institutos empresariais e think tanks sem escrúpulos. Além de ilegal e imoral, é sinal dos tempos em que proliferam nas políticas educacionais as consultorias privadas de todo tipo, aliadas ao amadorismo dos gestores de plantão.
Avaliação de impacto social: Modus operandi
O agente privado selecionado seguirá um ciclo de gestão dividido entre o planejamento das ações, a sua implementação, o monitoramento e a avaliação, realizado a cada ano. Deverá atuar em “programas de ação” abrangendo dois eixos, famílias e alunos, e tendo em vista, segundo o edital em consulta:
· Fornecer e implantar um canal direto de comunicação com as famílias;
· Definir equipes de profissionais especializados para tratar de assuntos relacionados às famílias nas escolas;
· Engajar e motivar os alunos a permanecerem nas escolas e entenderem a importância do aprendizado, podendo atuar no contraturno com atividades voltadas para a construção do projeto de vida e preparação da carreira dos jovens; para a mediação pedagógica em ações de reforço escolar aos alunos com baixo desempenho; e para o desenvolvimento do protagonismo juvenil.
Não é preciso muito esforço para descobrir os fios de algumas das estratégias que serão colocadas em prática nas 61 escolas “de tratamento” da rede estadual paulista. Alguns exemplos podem ser colhidos em matérias recentes da imprensa.
Para a melhoria da “qualidade de comunicação entre as famílias e a escola”, por exemplo, a matéria do caderno Mercado da Folha de S. Paulo, com o título “Escolas públicas de São Paulo usam teorias de Nobel para reduzir evasão” (15 out. 2017), apresenta o que seria a aplicação-piloto das teorias de economia comportamental de Richard Thaler (Prêmio Nobel de Economia) no controle da frequência escolar dos estudantes da rede estadual. Sem qualquer informação sobre a amostra ou preocupação com a ética na obtenção dos dados, o jornal reproduz que “na rede estadual” essa aplicação levou a uma redução de 3% nas reprovações, em comparação ao “grupo de controle”. Esse é o feito da startup social Mgov e de seu “EduqMais”, um projeto que envia “lembretes curtos via SMS para os pais sobre a importância da frequência escolar”. O desenvolvimento e, aparentemente, a aplicação-piloto recebeu o apoio da Fundação Lemann e da Omidyar. Também aparentemente, houve consentimento da SEE-SP para a realização desse experimento social na rede estadual.
No dia 12 de novembro, o mesmo jornal, no mesmo caderno, traz do Ceará a matéria “Treinar professor para diminuir bagunça na sala melhora aprendizado”. Dá conta de outro projeto-piloto, chamado “Gestão na Sala de Aula”, empacotado por Banco Mundial, Fundação Lemann e Elos Educacional. Segundo o jornal, testado em 2015, resultou que 175 escolas melhoraram em média 2 a 4 pontos no Spaece (avaliação estadual do Ceará), em comparação com as escolas não participantes: o grupo de controle. A inovação? Descobriram que formar os professores em serviço para o trabalho pedagógico em sala de aula (diminuir a bagunça), propiciando o diálogo sobre as práticas e a troca de experiências, melhora as condições de ensino-aprendizagem. Eureka! Por óbvio que seja para qualquer pessoa iniciada nos temas da política educacional, resultados modestos como esse tornam-se produtos educacionais vendáveis. A filantropia vai até o ponto em que se extraem os resultados comercializáveis. Daí em diante é negócio. O jornal, aliás, registra a desilusão da parceria empresarial com o governo do Ceará, que não se mostrou um cliente fiel: “Mesmo com bons resultados, nem todo programa vira política pública. (…) para a Fundação Lemann um desafio dos avaliadores é deixar mais claro para os gestores por quais canais foram obtidos os resultados”.
Eis o modus operandi dos mercadores da reforma educacional ancorada nas “avaliações de impacto”:
1. Montam suas coalizões, de preferência envolvendo um banco internacional de desenvolvimento (BID ou BIRD), uma fundação empresarial local e um think tank do Sudeste brasileiro;
2. Convencem um governo submisso ou aberto a “doações” a concordar com a aplicação de um projeto-piloto, um experimento, acompanhado por avaliação de impacto com grupo de controle;
3. Registram os resultados, ainda que pífios, e encontram um canal de comunicação que tope divulgar nacionalmente o “produto”;
4. Empacotam o produto e o levam à venda nas secretarias municipais e estaduais de educação, com publicidade orientada aos gestores educacionais e patrocinando eventos. Segundo os mercadores, os que não compram o fazem porque “não entenderam”, o velho argumento elitista. Os que entenderam, como no caso paulista, podem comprar diretamente ou lançar editais, como é o caso do CIS.
Quem garante é o mercado
A avaliação do CIS será, segundo a proposta, realizada por uma “terceira instituição”, evitando assim o conflito de interesses ora do Estado, ora de grupos próximos aos investidores sociais, criando condições para uma avaliação “independente”. O contrato define o perfil deste avaliador: uma “organização internacional com renomada reputação”, “experiência prévia na utilização de técnicas de avaliação” e o “domínio de métodos econométricos para realizar os testes estatísticos”.
É a partir do cumprimento das metas que o agente privado receberá o que lhe é devido. Conforme o próprio Governo do Estado procura justificar, o CIS não gera custo inicial para a SEE-SP, uma vez que “permite que as intervenções iniciais sejam financiadas por investidores privados, que podem vir a ser recompensados se o impacto social contratualizado for alcançado”. Destaca-se que o “ressarcimento” ou o pagamento pelo projeto ocorrerá caso as metas estipuladas sejam cumpridas, o que daria ao Estado uma “garantia no investimento”. Nada impede, entretanto, que ao final os parceiros extraiam volumosos lucros com o programa.
Dadas as características do organismo internacional descritas pelo CIS, é inescapável que o órgão avaliador seja, no mínimo, alguma entidade alinhada às políticas da OCDE ou do Banco Mundial, que concentram os “experts” e financiam governos na adaptação de seus projetos aos desenhos de seus investimentos. Basta para isso lembrar das recentes investidas dessas organizações para implantar novos modelos gerenciais nas escolas públicas brasileiras, como o contrato das organizações sociais (OS) nas escolas de Goiás e o modelo de pagamento por desempenho (PfR) no Ensino Médio da rede estadual do Ceará – este já emplacado pelo BID -.
(Re)produzindo desigualdades
Afinal, o que significam agentes privados gerindo, ainda que indiretamente, as escolas públicas? Em diversos momentos, a proposta do CIS expressa um certo cuidado quanto a isso. Nos termos, a contratada manterá relações pontuais com a direção da escola e seus professores. As atividades propostas não poderão ocorrer durante o turno das aulas, bem como deverão estar “integradas” ao projeto político-pedagógico da escola.
Atentemos aos detalhes. Para a realização do projeto, fica a cargo da escola a indicação de um de seus profissionais para o acompanhamento dos “empreendedores”, os quais, por sua vez, se responsabilizarão pelo contrato e pelo treinamento de suas equipes. Nada se diz sobre a contratação, em regime distinto, dos professores da escola.
É como se, dentro de uma mesma escola, passassem a existir dois modelos de ensino: um que é oferecido pelos professores da rede pública (que seguem o currículo oficial do Estado de São Paulo) e, conforme a dificuldade dos alunos, um que orienta a ação da equipe gestora externa. Fica a dúvida de até que ponto um investidor que assumiu o risco de perdas financeiras respeitará o acordado nos projetos político-pedagógicos das escolas, especialmente se as “metas” estiverem em risco. A proposta do CIS apresenta termos muito genéricos de proteção dos gestores e professores da escola, o que indicia a possibilidade de submissão da comunidade escolar às metas perseguidas pelo agente privado. Logo, o controle recairá sempre sobre o trabalho escolar, e jamais sobre o gestor privado, cuja meta maior é não levar prejuízo.
Os valores recebidos pelo agente privado selecionado no Edital são relativos ao desempenho no cumprimento das metas. O CIS poderá ser rescindido se as escolas “de tratamento” obtiverem índices inferiores às escolas do grupo de controle. Aplicando-se aos gestores privados a lógica que defendem para o setor público – competição e remuneração por desempenho –, as chances de que as escolas sofram a pressão decorrente desta lógica são enormes, e, como atesta a literatura especializada, com a produção de desigualdades educacionais ainda maiores.
Quando a necessária melhoria dos indicadores educacionais é assentada apenas na competitividade entre as escolas geridas pelo Estado e aquelas geridas pelo setor privado, nutridas pela lógica do mercado, a concorrência será sempre desleal, em vista da assimetria na destinação de recursos adicionais aos dois grupos de escolas. Tudo isso só leva água para o moinho das teses de que a educação básica pública será sempre de qualidade inferior à privada. Não nos enganemos: o CIS é um preâmbulo para a terceirização irrestrita na educação pública.
A atual SEE-SP já manifestou sua predileção por um Estado que muito ajuda quando não atrapalha, nas palavras de seu próprio secretário, José Renato Nalini. Mais ainda, é perverso o Estado que deixa de investir em políticas públicas e passa a apostar na sua própria desresponsabilização de garantir o direito à educação, utilizando deliberadamente seus recursos para produzir, de um lado, desigualdades planejadas, e de outro, lucro privado sobre as escolas públicas.

Salomão XimenesFernando Cássio e Silvio Carneiro são professores da UFABC e pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade e do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES)
Theresa Adrião é coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional(GREPPE) da Unicamp e do GT de Políticas Educacionais da ANPEd, pesquisadora do CEDES
Fonte: http://www.apeoesp.org.br

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