"Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a
criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista
é exatamente o desenvolvimento da curiosidade critica, insatisfeita, indócil.
Curiosidade com que podemos nos defender de ‘irracionalismos’ decorrentes ou
produzidos por certo excesso de ’racionalidade’ de nosso tempo altamente tecnologizado.
E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação
da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado,
não diviniza a tecnologia, mas de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou
mesmo a espreita de forma criticamente curiosa." (Paulo Freire, 1996; p.32
in Pedagogia da Autonomia)
A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo vem
implantando a chamada “Secretaria Digital”, em algumas diretorias de ensino.
Ocorre que os professores têm que realizar a digitação dos conteúdos dos
diários de classe, ocorrências e seu planejamento de aulas, sem que as escolas
ofereçam as condições necessárias para isto (entre elas, internet lenta, falta
de computadores e tablets, falta de manutenção nas máquinas e no sistema etc).
Mesmo quando o professor tenta utilizar seus próprios
equipamentos, depara-se com a falta de acesso à Internet, para realizar este
trabalho, obrigando-o a realizá-lo em casa ou na escola, (roubando seus HTPLs)
sem a devida remuneração. Para complicar, muitas escolas exigem que os
professores também façam os registros manuais, duplicando o trabalho. Nesse
sentido, a tal “Secretaria Digital”, transformou-se em mais um dos chicotes do
governo que “estalam” nas costas dos professores.
Você sabia que muitos professores não estão aceitando esse
chicote?
Nossos companheiros da E.E. Professor José Vieira de Morais
redigiram um documento no qual sustentam a impossibilidade da aplicação desse
sistema devido às precárias condições de trabalho em que estamos inseridos.
Analise o documento, discuta em sua escola e, como eles recuse-se a mais uma
“chibatada” governamental.
Documento:
Nós, profissionais e membros da
comunidade escolar da E. E. Prof. José Vieira de Moraes, de acordo com os
princípios constitucionais especialmente expressos em seu artigo 1.º, incisos II e III; artigo 3.º, incisos I
e IV, e seu artigo 5.º, incisos II e III;
bem como o que determina a Lei Complementar 444, de 27 de dezembro de 1985,
especialmente o contido em seu artigo 61, incisos I, II, III, IV, V e VI; em
seu artigo 63, incisos VII, VIII, XI, XIII e XV, tecemos as seguintes
considerações acerca do projeto de digitalização do processo pedagógico em
vigor na Diretoria Regional de Ensino Sul 3:
1. Estamos
sofrendo forte pressão para digitar uma série de informações relativas a todo
processo pedagógico, a partir de formulários eletrônicos determinados pelos órgãos
gestores da rede de ensino. Temos notícia inclusive de escolas em que os
professores o estão fazendo sob ameaças e intimidações da direção.
2. A lei 444,
em seu artigo 61, inciso I determina que o profissional tem o direito de ter a
seu alcance informações educacionais, bibliografia, material didático e outros
instrumentos, bem como contar com assistência técnica que auxilie e estimule a
melhoria do seu desempenho profissional e a ampliação de seus conhecimentos. No
que concerne a este projeto, as informações são raras e por vezes
desencontradas.
3. No inciso
III, a lei prescreve: “dispor de ambiente de trabalho, de instalação e material
técnico-pedagógico suficientes e adequados para que possa exercer com
eficiência e eficácia suas funções;” - aqui salientamos que nossa escola não
dispõe de wifi, a internet cabeada é extremamente lenta e o acesso restringe-se
à uma sala onde nem todos os computadores funcionam.
4. No inciso
IV a lei prescreve: “Ter liberdade de escolha e de utilização de materiais, de
procedimentos didáticos e de instrumentos de avaliação do processo de
ensino-aprendizagem, dentro dos princípios psicopedagógicos, objetivando
alicerçar o respeito à pessoa humana e, à construção do bem comum;” – A nosso
ver, o sistema limita a liberdade de cátedra do professor e subordina o humano
à máquina, pois consiste numa série de formulários padronizados que devem ser
preenchidos diariamente pelos docentes. Um formulário eletrônico também é um
formulário e digitalização de informações não significa necessariamente
diminuição dos entraves burocráticos, esse sistema é um bom exemplo disso.
5. No inciso
V, a lei prescreve: “receber remuneração de acordo com a classe, nível de
habilitação, tempo de serviço e regime de trabalho...”- Nesse interim,
considerando a experiência concreta do dia a dia da sala de aula, perguntamos:
os professores serão remunerados pelo aumento na carga de trabalho e das horas
trabalhadas em função da adoção deste sistema? Esclarecemos que um profissional
com duas aulas por turma precisa pegar 15 turmas para completar uma carga
horária de 30 horas; se cada turma tem 45 alunos (em média, não raras vezes
chega a 50 e até 60) e se cada disciplina deve dispor de pelo menos 2
instrumentos de avaliação no bimestre, somando-se aí as atividades de recuperação
e as destinadas à alunos com necessidades especiais, cuja elaboração também
consta como responsabilidade do professor de cada disciplina, pergunta-se: qual
é o tempo que ele dispõe para estudar, para preparar seus planos de aula, elaborar as
atividades e corrigi-las? É certo que dispomos de 2 h/aula por semana para
isso, mas, considerando que a correção das atividades de uma turma e o registro
demora em média 2,5 horas, o professor precisaria, no mínimo, 70 h/aula por
bimestre só para cuidar da avaliação e dos registro das notas. No entanto, o
que vemos não é o aumento da hora/atividade, mas um aumento da carga de
trabalho.
6. Consta
ainda no artigo 63 da Lei Complementar 444, de 27 de dezembro de 1985 a
necessidade da construção de uma sociedade democrática (inciso VII); o
desenvolvimento do senso crítico e da consciência política do educando (inciso
VIII); a defesa dos direitos profissionais e pela reputação da categoria
profissional. Assim, preocupa-nos o viés ideológico que a divulgação desse projeto
pode adquirir, pois muitos pais, desconhecendo as dificuldades e a falta de
infraestrutura, tenderão a considerar culpa dos professores os erros de uma
sistema que ele apenas alimenta, mas que é administrado por um órgão distante
da escola. Muitos pais, iludidos pelo acesso “fácil” ao produto (notas) poderá
deixar de considerar o caráter arbitrário, tecnicista, padronizante e injusto
do sistema.
7. Não
participamos da concepção e elaboração desse sistema de digitalização, ele está
sendo implantado de cima para baixo, o que, a nosso ver, fere a autonomia da
escola e o princípio da democracia apregoado pela Constituição Federal e pela
própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96).
8. Enfatizamos
que nossa escola já dispõe de um sistema informatizado do processo pedagógico,
amplamente aceito e aprovado pela comunidade escolar, com eficácia
técnico-pedagógica reconhecida por todos os profissionais da escola. Os ganhos
na qualidade de nosso trabalho, que podem ser atestado nos índices oficiais,
como por exemplo o resultado de nossos alunos do SARESP, ENEM e vestibulares,
se deve em grande parte pela eficácia de nosso sistema; suplanta-lo em prol de
um cuja funcionalidade é, no mínimo, questionável não se justifica.
Por fim,
ressaltamos que está em jogo é muito mais do que um mero capricho burocrático,
são os princípios que norteiam a cidadania, a dignidade humana, a qualidade na
educação pública brasileira e a democracia. Tais princípios não se coadunam com
tecnicismo, arbitrariedade, sujeição e intimidação. Por isso deixamos claro a
impossibilidade de aderirmos por hora ao mencionado projeto.
São Paulo,
22 de abril de 2014.
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